ALERP
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30/07/2025 18:52:19 | Por: Josselmo Batista Neres | Visitas: 19
Arquivo pessoal
O Piauí, terra de sol ardente e rios serenos, vê o cordel — antes trajado em gibão e chapéu de couro — cada vez mais se adornar com a delicadeza e a força das mãos femininas. Mulheres destemidas convertem versos em vozes, unindo tradição e modernidade. Suas histórias, gravadas em rimas e xilogravuras, carregam saberes ancestrais e lutas contemporâneas. Mais do que poesia, é persistência, arte e sustento. Ao romper convenções, elas constroem narrativas de resistência e empoderamento, conquistando seu lugar na produção cultural. Além de se destacarem na fomentação de obras que envolvem múltiplas temáticas, as quais ampliam a representatividade de gênero, modificando histórias e realidades.
Em entrevista à GeleiaTotal.com.br, Maria Ilza Bezerra, professora e membro da Academia Brasileira de Literatura de Cordel (ABLC) e da Academia de Letras da Região de Picos (ALERP), ressalta que, embora novas vozes estejam surgindo, os desafios ainda são grandes. “O cordel, como expressão popular, se desenvolveu sob forte influência masculina no Nordeste, e essa tradição impõe barreiras para nós, mulheres. Mesmo produzindo cordéis de alta qualidade, enfrentamos invisibilidade. Tive que me esforçar muito para chegar onde cheguei”, afirma. Ela relata ainda o preconceito velado: “Recebo piadas de mau gosto, como ‘você escreve bem, desliza muito pouco”. E destaca: “Os cordelistas “machos” se julgam perfeitos. Quando abordamos temas como feminismo, violência contra a mulher, empoderamento ou ancestralidade, somos criticadas por eles”.
Embora a representação feminina costume ser marcada por estereótipos – seja a donzela frágil à espera de um salvador, a mãe abnegada dedicada aos filhos ou a sedutora que leva os homens à ruína –, as cordelistas carregam no peito a coragem de Maria, a doçura de Ana e a sabedoria de tantas mulheres que vieram antes delas. Seus versos retratam o trabalho no roçado, a delicadeza das rendeiras e a força das parteiras. No entanto, a realidade não é fácil: algumas enfrentam dificuldades financeiras, políticas públicas que beneficiam poucas como a Lei de Incentivo da Política Nacional Aldir Blanc de Fomento à Cultura (PNAB) e a sobrecarga de tarefas, pois a jornada da mulher nunca tem fim. Ainda assim, cantam com fé, resistência e superação sem temer abordar questões sociais, questionar o papel da mulher na sociedade ou reivindicar seu espaço com a mesma altivez com que celebram os feitos dos cangaceiros e as lendas do Boi. “Tive que batalhar para mostrar aos acadêmicos que o cordel é nossa mais pura expressão poética, a porta de entrada para todas as artes, sobretudo a música. Depois de muita persistência, conquistei meu lugar na ALERP”, destaca Ilza.
O sertão, com suas tradições profundamente enraizadas, sempre guardou sementes de rebeldia. Assim, a mulher nordestina, forte como a pedra e resistente como a jurema, pouco a pouco conquista seu espaço. Vale destacar que, apesar dos obstáculos, a participação de cordelistas femininas têm aumentado no Piauí e em toda a região Nordeste. Reunidas em coletivos, elas publicam de forma independente e organizam eventos que ampliam sua visibilidade e protagonismo. Iniciativas como projetos educativos, ações afirmativas e políticas públicas culturais com perspectiva de gênero são essenciais para fortalecer essas conquistas. Inquestionavelmente, as mulheres cordelistas buscam visibilidade nacional e internacional, além da ocupação de espaços nas Academias Literárias para fortalecer sua identidade e legado. Suas vozes merecem ser ouvidas e valorizadas.
Em cada palavra plantada, germina um universo. Com a caneta na mão e o coração no ritmo, elas reinventam tradições, mostrando que a voz feminina não se cala, mas se eleva em poesia e métrica. Apesar das desigualdades estruturais e da resistência em alguns círculos da crítica, o trabalho das cordelistas piauienses tem sido amplamente acolhido pelo público e, gradualmente, ganha reconhecimento nos espaços literários e culturais. Segundo Ilza, à medida que as mulheres ocupam esses espaços com voz e identidade próprias, o cenário do cordel no Piauí se torna mais diverso e inovador. Por outro prisma, a popularização das redes sociais e plataformas digitais também tem ampliado seu alcance, conectando-as a um público mais amplo e gerando maior engajamento. “Isso tem ajudado a transformar a percepção sobre o papel da mulher no cordel, desafiando estigmas e despertando o interesse da mídia e da crítica local”, aponta.
Por outro lado, a pesquisa acadêmica e a crítica literária, desenvolvida por professores universitários, pesquisadores e jornalistas culturais, já incorporam as mulheres cordelistas em seus estudos, análises e eventos. Teses, dissertações, artigos, seminários e colóquios evidenciam a produção feminina no cordel nordestino, inclusive no Piauí. “Minhas próprias narrativas já são objeto de estudo em algumas universidades e revistas literárias. É um avanço significativo, mas ainda precisamos de mais engajamento para que essa produção ganhe ainda mais visibilidade e impacto”, declara a autora.
De fato, nada se transforma repentinamente. Como um rio, a revolução é um fluxo contínuo que nem sempre segue em linha reta, mas avança sem parar rumo ao mar. No começo do século XX, surgiam pioneiras como Maria das Neves Batista Pimentel, a qual desafiava as regras da época, mesmo quando sua voz era abafada pelo coro majoritariamente masculino. Assim, entre versos e rimas, as mulheres reafirmam sua presença, mostrando que a poesia é uma arte sem fronteiras, a expressão mais genuína da alma em pleno florescimento. Segundo a professora, os principais impactos dessa participação são a ampliação dos temas tratados, uma estética mais inovadora e o emprego de novas linguagens, principalmente porque muitos cordelistas também atuam como educadores. As autoras contemporâneas revisitam narrativas clássicas com uma perspectiva renovada, apresentando mulheres nordestinas como figuras de resistência e protagonistas de suas próprias histórias.
Nomes como Dalinha Catunda, Josefina Ferreira além de Maria Ilza Bezerra evidenciam o crescente reconhecimento e visibilidade das vozes femininas, as quais trazem novas abordagens e perspectivas para essa tradição literária. “Fui pioneira ao me tornar a primeira mulher a publicar um cordel por uma editora paulista há 24 anos: ‘Romeu e Julieta’, obra que inseriu meu nome em estudos acadêmicos. Além disso, sou a única cordelista piauiense a ocupar uma cadeira na Academia Brasileira de Literatura de Cordel (ABLC)”.
Nesse contexto, a nova geração de cordelistas cada vez mais quebra estereótipos, trazendo temas mais atuais e relevantes. Ao reinterpretar os contos de fadas tradicionais, não só abrilhantam o gênero, como também oferecem uma nova forma de representar as mulheres. Tal diversidade de temas e estilos que surge das produções feitas por mulheres definitivamente corroboram para uma cultura popular mais inclusiva, a qual representa as experiências de todos os brasileiros. Uma vez que a respectiva evolução na literatura de cordel é um passo importante para estimular a igualdade de gênero e dar voz àquelas que, antes, ficavam à margem.
Da sua luta valente
Nasceu um novo pensar:
“Liberdade não se espera
– É preciso conquistar –
Na força do povo unido
Ninguém pode nos calar!”
“O viver se faz de luta
De palavra e de raiz
E bem fincada no chão
Que de fato se condiz
Com seu constante devir
Do nosso imenso país!”
“Penso que a mulher é mais emotiva, usa de mais sensibilidade ao compor suas histórias em cordel. Eu mesma me coloco na pele das minhas personagens, passo a fazer parte da vida delas como se a vida de cada uma fosse minha, sinto todas as suas paixões, dores, desenganos, tristezas, desejos de luta. Nossas vidas se misturam como se fossem uma só. A voz contida em cada narrativa representa a minha voz”, revela.
Do barbante às telas de celulares, o cordel ergue-se como bandeira de coragem. Cada verso é um grito afinado, ecoando temas antes silenciados: o corpo, a luta, a fé, a maternidade, a política. Mais do que poesia popular, o cordel se tornou voz de resistência e afirmação identitária. À medida que a crescente presença feminina trouxe renovação, ampliando horizontes na literatura, no artesanato e nas performances, enriquecendo ainda mais a cultura nordestina. “Nossa representatividade se consolida nas escolas, universidades e eventos culturais — desde as Bienais do Livro até os Salões Literários e as Festas de Folguedos. Fazer cordel é um ato terapêutico, que traduz convivência e troca. Essa arte fortalece nossa autoestima e tece laços entre mulheres, impulsionando o empoderamento das cordelistas”.
De fato, o cordel é sua arma: uma voz que denuncia, preserva e sonha. Suas personagens, como Vitória, personificam a resistência contra as violências ambientais e sociais: a deusa do rio Guaribas, que luta em vão para protegê-lo, enquanto o mal triunfa impunemente. Sem dúvida, Ilza transforma a indignação em arte com maestria. Sua inspiração brota da realidade que a cerca e a perturba: mulheres mendigando nas ruas, tantas brasileiras sofrendo violência doméstica, morrendo em busca de liberdade. Além disso, testemunha a destruição causada pelas chamas, fruto da ignorância humana, enquanto o poder público se omite diante da devastação ambiental. Observa os animais sendo abandonados e maltratados, vítimas da falta de políticas públicas eficazes. Pássaros sucumbindo às chamas sem qualquer proteção, enquanto a fumaça descontrolada invade as cidades. O lixo queimado sem fiscalização, os rios sendo devastados. Ela retrata personagens que enfrentam desafios reais, dando voz aos marginalizados. Sua obra revela a crueldade da vida, assim como também a resistência humana. Como ela mesma explica, nossa criação não surge do nada. “A imaginação se alimenta da realidade em que vivemos — só posso falar daquilo que vejo e que me dá base para imaginar. Através da arte do cordel, podemos denunciar, preservar memórias, tecer sonhos e reivindicar direitos, porque o cordel é nossa porta-voz”.
Isto é, a revolução não veio pela espada, porém pelos versos. Chegou com mulheres que transformaram medo em rima e submissão em voz. Elas reescreveram não apenas poemas, mas seu próprio lugar no mundo. “É indiscutível que o cordel fortalece a oralidade e a escrita, formando leitores e cidadãos críticos. Na educação é uma prática pedagógica de empoderamento, reflexão e mudança social. Ele amplia vozes, questiona estruturas opressoras e contribui para um ambiente escolar mais justo e transformador”, enfatiza a cordelista. Portanto, as mulheres no cordel já não são exceção, entretanto uma força vibrante que renova e preserva essa tradição tão brasileira. Elas provaram que a poesia não tem gênero, que a arte é um território de todos e que o cordel, com sua essência popular e capacidade de se reinventar, é o palco ideal para a diversidade de vozes. De acordo com Maria Ilza, a voz feminina na literatura de cordel tem grande importância para a representatividade cultural por razões históricas, sociais e literárias. Ela destaca: “É fundamental o resgate da visibilidade de histórias silenciadas pelo patriarcado – como explorei em meu cordel “Bárbara de Alencar – além das travessias do sertão”, onde retrato a trajetória de uma mulher que lutou pela independência do Brasil, entretanto permaneceu esquecida por muito tempo, tendo sua história distorcida por narrativas machistas”.
“Meu maior sonho é que minhas personagens cheguem à Sapucaí, cruzem o Atlântico e conquistem outros países, levando o cordel para escolas, universidades e diversos espaços, onde seja bem recebido. Espero que minhas narrativas sobre mulheres de resistência alcancem todas as escolas brasileiras e que, ao serem lidas, inspirem uma nova forma de pensar, agir e transformar,” finaliza.
Personagem que expressa opiniões, questiona normas sociais e assume um papel de protagonista. No cordel, a mulher rompeu com a passividade, transformando-se em heroína, voz ativa e figura central das narrativas. Antes dominada por uma perspectiva masculina, hoje celebra a força, a sensibilidade e a sabedoria. Suas histórias revelam vivências e a riqueza do universo feminino, revitalizando essa tradição popular.
Fonte: www.geleiatotal.com.br - por Nayara Fernandes
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