ALERP
ALERP
28/08/2020 17:05:03 | Por: Gilson Chagas | Visitas: 433
Imagem: Divulgação
Gilson Chagas*
Mesmo repetindo um chavão recorrente nas apresentações de obras literárias, é forçoso admitir que formular juízo sobre Deolinda Marques – pessoa e trabalho - é tarefa assaz difícil para os estreitos limites de um prefácio como este. Sobretudo por ser seu “construtor” alguém como eu: operário separado para o estudo e ensino das ciências sociais aplicadas; afeito, portanto, à linguagem denotativa das publicações técnico-didáticas. Transito numa área específica do território acadêmico onde prevalecem as convenções: dois mais dois são sempre quatro. Bem que, volta e meia, poderiam “sair do quadrado” e – só de birra – tornarem-se vinte e dois. - ou até mais!... Não sei por que não o fazem.
Mas, parafraseando doutora Lorca - a “nutricionista” do humorístico “zorra total”,
- Na literatura, pode!
Sim, claro que pode! E como, paradoxalmente, me causou inquietação e prazer, monopolizou minha atenção e sensibilidade, navegar neste rio de ideias cristalinamente articuladas, que Deolinda Marques, na modéstia que lhe é própria, chamou de “impressões de leitura”. Se fossem meras impressões seria fácil defini-las. Demandariam apenas uma caminhada “pari passu” com a autora, comungando e processando sentimentos e reflexões extraídas das peças vistas e lidas. Mas não é tão simples assim....Seus textos são, no fundo, análises críticas com densidade de ensaios, textura de romance e a deliciosa leveza da crônica ou da poesia.
Suas “impressões” expressam mergulhos verticais feitos no âmago das obras lidas ao longo de anos de aprendizado teórico, observação e aplicação prática. A ensaísta, que, em seu papel temporal, é professora de literatura e disciplinas afins, não restringe sua análise ao que está escrito. Detém-se em esquadrinhar a criatura e as motivações de seu criador, para defini-las em seu plano mais profundo e aquilatar-lhes significados e simbolismos. Enfim, ela enxerga e traduz não apenas o que está explicitamente proposto, mas também o que está intrinsecamente sugerido. Essa é uma espécie de compulsão que costuma mover o crítico vocacionado, o qual nunca se contenta na degustação da “iguaria”, por mais suculenta que ela seja, mas a ausculta e disseca, absorvendo seus nutrientes mais sutis, para impregnar-se deles e, num momento futuro, socializá-los.
Percebo, assim, numa primeira visita a esta coletânea de ensaios, que, como pressupunha, é impossível dissociar a Deolinda ensaísta da Deolinda professora. “Que o homem não separe o que Deus uniu”. Ela é compulsivamente criteriosa nas opiniões que emite e nas informações que presta - embora em ambos os casos o faça com doçura e generosidade. Constrói, ademais, suas análises com o rigor metodológico típico das produções científicas. Isto é, interliga cada texto examinado com as respectivas fontes, nas quais frui inspiração, e fundamenta suas hipóteses – sempre com argumentação técnica plausível, referências bibliográficas, notas de rodapé e citações pertinentes.
Cumpre esclarecer, porém, que esse esmero técnico, visível em seus textos, flui em ritmo natural – espontâneo, não calculado - próprio dos que conhecem (de cor) - e vivenciam em seu cotidiano - as leis da arte e da ciência da arte. Assim, de seus textos (originariamente analíticos) nascem criações novas, com lampejos de beleza e fagulhas do saber universal imanentes à boa literatura.
ASSIM NA PROSA COMO NO VERSO
Suas visitas, a propósito, são feitas em variados gêneros. Assim é com a antologia “o ´conto da geração 70”; com louvores para seu organizador, Airton Sampaio, e para outros dois autores: Rosa Capila e João Luís. No estudo da poética de Erivan Lima, expressa na obra “Por que não ver longe?”, destaca “o poema maior”, que garante ser “realmente (...) o maior! Maior, não pelo tamanho, nem mesmo pelo título que traz, mas, sobretudo, pelo seu caráter de modernidade”
Em Francisco Miguel de Moura, reporta-se a dois de seus romances: “Dom Xicote” e “o menino (quase) perdido”. Do primeiro, entre tantas passagens notáveis, ela destaca uma "receita infalível de como tornar-se um grande escritor". Ao segundo, farei menção em um dos parágrafos subsequentes.
Em Vilebaldo Rocha, a quem chama de “um ícaro moderno”, faz uma passagem analítica por seus “cacos de vidro” e “o caçador de passarinho”. Ambos são livros de elevado nível poético, com uma “pegadinha” no título do segundo.
Com William Palha Dias ela vai “nos tempos de sinhá madama”. Em Renato Duarte, rememora Picos dos “verdes anos 50”, e vê em sua obra, além de outros pontos relevantes, “uma mistura de memória, confissão, relato histórico, denúncia ecológica, tratado socioeconômico e antropológico.”
Em Ozildo Barros, um mergulho na poética de “Etc & tal – versos e reversos”. Examina os versos e reversos e se concentra no “et cétera,” com ênfase até maior para o “tal”. A superfície é somente um plano de apoio; a ordem é apreender, com olhos de lince ou com lupa, a mensagem subjacente ao eixo extrínseco das palavras. Isto é, as intertextualidades bíblicas recorrentes no exterior da poesia de Ozildo, refletem (segundo Deolinda), além de uma sólida fé em Deus - . alavancada, quem sabe?, por sua formação teológico-cristã – a expressão patente de um ideário humanístico, transformado “em angústia, revolta, denúncia, ação política, contra os males que afligem a humanidade”.
A poética projetaria, pois, um desejo íntimo do autor de que em algum lugar do futuro se possa atingir uma realidade social semelhante à do paraíso. Não por acaso o ensaio se intitula “O paraíso, um projeto de sociedade”. O correspondente provável (entendo eu) a uma versão bem-sucedida – ou mesmo uma antítese - da “sociedade alternativa” preconizada – e até levada a efeito em escala experimental – por um furacão chamado Raul Seixas que em décadas passadas atravessou a música brasileira.
E sobrou ainda uma raspinha de tacho para este prefaciador, ora colocado no lado oposto da mesa. Dedicou ela um olhar generoso aos meus romances “música para pensar” e “a ferro e fogo”. Deste último, pinçou o aspecto esportivo da linguagem e fez, assim, de um limão solitário uma deliciosa limonada. De outro modo, armou um engenhoso jogo de palavras, condensando em pouquíssimos parágrafos as metáforas futebolísticas dispersas nos capítulos. “Editou”, fez uma síntese acurada – senão perfeita - como nas montagens digitais, tão em voga nos tempos que correm.
Outros escritores mereceram também a atenção da ensaísta: Alberto Nunes, Fidélia Rocha. Erismá Moura, Valentim Neto, Dom Augusto etc & tal. Por razões de espaço, não posso tecer aqui, em pormenores, as análises de todas as obras focalizadas, posto que me alongaria muito além do razoável.
O MENINO...
Tendo como mote “O menino (quase) perdido”, romance de Francisco Miguel de Miguel, ela, com visão própria, argumentação abalizada e convincente, - explica e absolve o valor literário das autobiografias. Cita Faraco (2010, p.40), cujos conceitos, no particular, conferem validade ou fundamento a esse gênero da criação em prosa, com o qual boa parte dos autores inicia, - e/ou termina - suas trajetórias literárias.
Associo-me às ponderações da ensaísta e, com finalidades exclusivamente pedagógicas, disponho-me a chamar, aqui, este tema à arena de debate. Pois, embora eu não tenha esse gênero entre minhas criações, em tese ele me desperta interesse.
E, conforme opina o autor apropriadamente referido por Deolinda, a autobiografia será esteticamente criativa se houver um “deslocamento”, ou seja, “se o escritor for capaz de trabalhar em sua linguagem, permanecendo fora dela”.
Esposo em termos essa tese de Faraco. Com efeito, é inconteste que trabalhos autobiográficos e outras incursões memorialistas podem ser “esteticamente criativas” e fazer-se com elas uma produção de boa estirpe. A meu ver, Humberto de Campos é um exemplo disso entre os clássicos. De certa forma, ele ajuda a legitimar esse gênero com suas “memórias”, “crônicas”, “notas de um diarista” etc Talvez não seja pacífico, no entanto, é achar-se alguma publicação genuinamente autobiográfica com fôlego e longevidade das obras-primas.
Além disso - e a professora Deolinda tem o domínio desta causa - é mais do que comum encontrar-se biógrafo de si mesmo, incapaz de “deslocar-se” ou de “permanecer fora de sua linguagem”. Inúmeras autobiografias – embora válidas, por serem o marco inicial de uma carreira ou a história pessoal de alguma celebridade – não contêm os requisitos de maturidade e isenção preconizados por Faraco. Nelas, o autor - em geral, iniciante e/ou com uma visão incompleta do que seja literatura - além de eleger-se a si mesmo como foco - cerrando, assim, as portas de sua narrativa à criação de personagens magníficos - vira e mexe, escorrega nas armadilhas de seu superego ou a ele já é naturalmente rendido. Seus textos omitem as fragilidades do autor e superdimensionam os merecimentos que ele possui ou que supõe possuir. E mais: na mesma brasa que arrasta para a sardinha sua e dos seus, ele assa a batata dos desafetos. Seu time vence no domingo, porque ele é “o cara”: torcedor carismático, quiçá um mágico em sua forma de incendiar o jogo. Mas quando a ressaca da comemoração o faz perder a hora na segunda-feira, o culpado é o mordomo ou o dono do alambique.
Há que se destacar, todavia, que, na visita crítica ao “o menino (quase) perdido”, Deolinda prova técnica e cabalmente que nele “o autor-pessoa se despe e revela de forma honesta, sincera e verdadeira seus sentimentos mais íntimos, como seus medos, fraquezas etc”. Isso está absolutamente certo, concordo. E acontece porque Chico Miguel não é um autor comum, tampouco inexperiente. Pelo contrário: está a milhares de pés acima disso!.
Por fim, a professora e escritora Deolinda Marques, em um dos primeiros ensaios deste livro, para justificar um suposto embaraço seu em analisar poesia, invocou um pensamento de Santo Agostinho nesta emblemática confissão que ele teria feito ao refletir sobre o significado do tempo: "Se não me perguntam, eu sei o que é; mas se me perguntam, já não sei mais".
Confortador para todos esse milagre. Ora, se ao grande pensador cristão (entronizado santo católico) era lícito deparar-se com incertezas e ver algum fenômeno como enigma; livre fico eu (mortal comum) para enfrentar o desafio de um prefácio desta envergadura, com a reserva confessada sob a pressão das primeiras linhas.
Sobre a autora, contudo, eu sei - ou pelo menos penso que sei – e, portanto, ouso dizer: ela é uma poetisa que (teimosamente) retém, inéditos, seus versos; revela-se aqui uma ótima ensaísta e crítica literária serena que sabe exprimir, com domínio invejável, o mérito e a forma das obras que se propõe analisar. Possui um cabedal intelectual que, embora “se esforce” para esconder, salta aos olhos dos mais próximos e dos apreciadores mais distantes. Tem um futuro literário que não pode continuar “embaçado” num presente contido. A exemplo do que atesta sobre Chico Miguel, ela também pode tornar-se, quando quiser, uma .contista, romancista, escritora de todo gênero – o que positivamente já é - e a família (sanguínea e acadêmica) sabe. Ah se sabe!....
Brasília, dezembro de 2017.
*Escritor e professor universitário.
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