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19/05/2021 12:40:58 | Por: Deolinda Maria de Sousa Marques | Visitas: 676
Imagem: Divulgação
Há dez anos (2011), quando me propus a averiguar a recorrência e representação metafórica dos termos pássaro / passarinho na obra poética de Vilebaldo Nogueira Rocha (Cacos de Vidro – 2000 e O Caçador de Passarinhos – 2006)¹, deparei-me com uma incidência ainda maior e, talvez, mais significativa: a utilização e simbologia do vocábulo menino. Concluí minhas observações apontando que essa seria “outra história”. Tal fato nunca saiu da minha mente, por isso tentarei, se não decifrar esse enredo, pelo menos repassar as impressões percebidas sobre o referido encantamento.
Era uma vez um menino...
O verbete menino (em todas as suas flexões – menino(a) (s) –, que foi encontrado 42 vezes nas duas obras, tem continuidade de registro em Pau & Pedra (2013), onde a mesma forma foi usada mais 18 vezes, somando um total de 60 vezes do emprego dessa palavra.
No entanto, vale ressaltar que a reiteração do termo não ocorre por mera repetição, decorrente de pobreza vocabular do poeta. Há toda uma intenção e simbologia. Por isso, essa incidência não passa despercebida aos olhos de nenhum leitor.
O lexema é utilizado ora como substantivo (sua classe gramatical por excelência),
Menino (s. f.) 1. Criança do sexo masculino (sin. bras. Na maioria: pequeno, miúdo, rapaz, garoto, guri, crila, curumi ou curumim, piá. 2. Tratamento familiar e afetuoso entre parentes e amigos ainda que adulto.²
como sinônimo de criança (“meninos afoitos”, “os meninos da Etiópia”), de filho (“o seu menino”), mas também é empregado em função adjetiva (como meninil), qualificando termos como poeta (“poeta menino”), sorriso (“sorriso menino”), significando inocente, ingênuo; e em sentido metafórico, como tempo passado, distante (“tempo de menino”) ou época da infância (“quando menino”).
Inicialmente a frequência desse elemento linguístico pode ser vista tão somente como um aspecto saudosista na obra, em que a infância (“período de crescimento no ser humano que vai do nascimento até a puberdade”)3 é retratada como uma época inesquecível, marcada pela simplicidade, brincadeiras, atitudes ingênuas, que povoa as lembranças, transformando-se em tema central da produção do poeta. Contrariando essa hipótese, pode-se constatar que a palavra infância, referindo-se à essa fase da vida, é usada apenas sete vezes: “Rio da minha infância” (CV – p. 14), “fragmentos da infância” (CV – p. 16), “colhendo imagens da infância” (OCP – p. 40), “E o esterco curtido da infância” (PP – p. 24), “engenhos da infância” (PP – p. 25), “uma réstia da infância” (PP – p. 33) e “cartão postal da infância” (PP – p. 75). Aparece na obra ainda como sinônimo de inocência: “Quem roubou a infância dos mortos” (OCP – p. 31).
Igualmente, o termo criança, mais genérico e que pode ser empregado como referência aos dois gêneros (masculino e feminino), cuja significação é sinonímia de menino, é muito pouco utilizado pelo poeta no decorrer da obra. Apenas quatro vezes: duas em Cacos de Vidro (“como uma criança no ventre da mãe” p. 12 e “Meu verso agora é criança” p. 35) e duas em Pau & Pedra (“como os olhos de criança no pomar” p. 48 e “criança brincando” p. 74). Sendo que em O Caçador de Passarinhos a palavra não foi usada nenhuma vez.
Se o apego a esse menino não se dá por limitação do léxico nem se caracteriza como um traço de reminiscências na obra do poeta, a que atribuir essa presença, essa relação afetuosa?
Menino x Homem
Na tentativa de entender essa marca linguística, percebemos que outro vocábulo aparece em igual nível, constituindo-se uma possível antítese: menino x homem.
Quantificando-se sua recorrência, podemos constatar que o verbete
(e sua flexão de número homens, bem como a sua representação escrita de fala: “home”) é utilizado 84 vezes nas três obras poéticas de Vilebaldo Rocha. Entretanto, em quase a totalidade das vezes, a palavra é empregada com a significação de “a espécie humana” (homens e mulheres), “a humanidade” (“O tempo muda os homens” CV – p. 11; “É dezembro e os homens ficam de coração mole” OCP – p. 22; “Este mundo de homens tortos!” PP – p. 42); às vezes individualizado como uma pessoa, um indivíduo, um ser humano, um cidadão qualquer (“Um homem está morrendo” CV – p. 77; “Mãe, há um homem de gravata lá fora” OCP – p. 30; “O homem insemina a terra” PP. p. 46) e até como “macho”; oposto de mulher, de fêmea (“’Homem não chora’” CV – p. 46“; “Principalmente homens e mulheres” OCP – p. 54; “O homem olha o roçado, a mulher” PP – p. 46).
Porém, bem poucas vezes foi aplicado com o sentido de adulto, homem-feito (“um homem surgido do meio da noite” OCP – p. 15; “Que projeta o homem jovem para o futuro” PP – p. 64); conotação que se constituiria oposição a menino. Assim sendo, cai por terra mais uma hipótese: menino não representa apenas uma oposição a adulto, homem.
Homem poeta
Todavia, durante essa investigação, podemos observar que a obra do poeta Vilebaldo Rocha chama a atenção também pela presença de outro universo vocabular do campo semântico do próprio fazer poético. No decorrer da análise podemos constatar que palavras como poeta, poesia, poema e verso são frequentemente empregadas sem que essa recorrência se constitua apenas uma tônica metalinguística.
Os termos poesia, encontrado 29 vezes, poema(s), 34 e verso(s), 54, podem ser vistos tão somente como elementos de reflexão sobre o fazer literário e suas intricadas engrenagens do processo criativo. No entanto, a utilização da palavra poeta vai além do conhecimento acerca do ato de escrever. O substantivo verso(s) que é utilizado quase sempre na sua acepção primeira, denotativa, como “cada linha do poema” (“Há hálito de saudade nos versos que rascunho” CV – p. 33; “Com 19 versos te olho do fundo do coração” OCP – p. 54; “Uma oração germina em versos” PP – p. 23), às vezes é empregado em sentido mais amplo, significando poema/poesia: “Dormirás eternamente em meu verso” CV – p. 11; “O meu verso é meu Sudário” OCP – p. 33; “Eu quero no meu verso renascer” PP – p. 27. Da mesma forma, os lexemas poesia e poema são apresentados em suas conotações teóricas convencionais. Poesia como conteúdo poético: inspiração, entusiasmo criador, aquilo que desperta o sentimento do belo (“Só no dorso da poesia / Consigo me libertar” CV – p. 52; “Pingo / de / verso / Inunda o mar da poesia" OCP – p. 49; “A poesia que jorra do povo” PP – p. 72) e poema como forma poética: obra em versos, composição escrita em versos (“Quando eu jogar / Minha vida num poema” CV – p. 41; “Um poema se escreve na pedra” OCP – p. 13; “De palavra em palavra se faz um poema” PP – p. 68). Embora em alguns momentos as palavras sejam aplicadas como palavras sinônimas – acepção mais popular–, como se tivessem a mesma significação: “Do poeta nada importa / se a poesia não presta” PP – p. 75; “A poesia se constrói” OCP – p.13.
Da mesma forma, o verbete poeta aparece na obra 26 vezes, sendo a maioria delas em seu sentido denotativo “aquele que tem faculdades poéticas e se consagra à poesia; aquele que faz versos”:
“Os versos são brinquedos na voz do poeta” (CV – p. 24);
“Um aprendiz de poeta” (OCP – p. 25)”;
“O poeta finge indiscreta-mente” (PP – p. 57).
É utilizado na forma substantiva, ora como referência ao escritor, um escritor qualquer (“Da estante meus poetas riem” CV – p. 49; “Do poeta nada importa” PP – p. 75), ora como menção a amigos ou a seus poetas preferidos (“Agora dorme Poeta, dorme” CV – p. 74 – referência a Drummond ; “Vou pedir a meu amigo poeta” OCP – p. 53). Mas encontra-se ainda em função adjetiva (adjunto adnominal) em expressões como “meu coração de poeta” (CV – p. 53); “molhando minha alma de poeta” (OCP – p. 49).
Entretanto, pode-se constatar que o emprego do elemento linguístico é quase sempre no papel de sujeito da ação poética – eu lírico –, referindo-se a si próprio como escritor-poeta, que pode ser lido como um referencial direto ao poeta Vilebaldo Rocha. Basta ver poemas autobiográficos como “Dona Conceição” e “Pau & Pedra”, nos quais o poeta se auto revela:
“Sou teu admirador,
Um aprendiz de poeta.” (OCP – p. 25)
“Sou verso cascalho
Do fundo do rio
Aonde o poeta menino
Vem me decantar” (PP – p. 20)
Percebe-se ainda que o poeta, o aedo está representado como homem adulto em oposição a menino (poeta : homem x menino). Portanto, “aquele que devaneia ou tem caráter idealista” é o menino, e não o poeta, o homem. Tese que passaremos a investigar.
Poeta x Menino
Segundo Maria Antonieta Antunes Cunha (1986)5, “é muito comum compararmos a criança e o poeta”, uma vez que “o mundo infantil é cheio de imagens, como o campo da poesia”. Dessa forma, a sensibilidade e a fantasia, que tanto caracterizam o período da infância, estão presentes também no texto poético. A linguagem afetiva, musical, metafórica, predominante na poesia, é facilmente percebida na fala das crianças. Assim sendo, é muito frequente estabelecer-se essa comparação entre a criança e o poeta, dada a semelhança que existe entre os dois.
O sujeito lírico da poesia, conforme afirma (embora em breve comentário) Salete de Almeida Cara (1986)6, “não se refere a uma pessoa”, visto que ele “sempre existe através das escolhas de linguagem que o poema apresenta”. O eu poético (voz que fala no poema, expressando a subjetividade do poeta e/ou a maneira pela qual o mundo exterior se transforma em vivência interior) é uma criação ficcional, e não representa o próprio poeta, como se autodefine no poema “Eu e meu verso”:
“Eu não sou meu verso
Nem meu verso sou eu.
Somos ambos independentes,
Embora ele carregue em si
Toda essência do meu SER.” (CV – p. 42)
Desse modo, o eu lírico “não pode ser confundido com o poeta de carne e osso”. Contudo, na poesia de Vilebaldo Rocha, nota-se uma duplicidade do sujeito poético que, ora se fundem, ora travam um confronto, uma oposição, tendo em vista representarem dois mundos, compostos por ideias e pensamento diferentes: o do poeta e o do menino.
O poeta representado pelo homem adulto “já não é tão romântico e sonhador” (CV – p. 12) e tenta “ocultar nas dobras do poema tuas mazelas” (CV – p. 12) do mundo e dos homens. Mesmo assim, seus versos “são lágrimas salgadas e amargas e tristes” (CV – p. 15) e, na maioria das vezes, seu poema não comporta seu silêncio. O poeta sente-se acorrentado, “prisioneiro de (si) mesmo”, “faz um verso inútil” e “vai embora”, deixando renascer o menino que nele existe.
Enquanto o poeta adulto “faz versos tristes”, mesmo tentando não sofrer e alimentando a “ilusão de ser feliz”, e confessa “meu verso agora é criança / que não viu a luz do sol” (CV – p. 35), o menino – calça curta – “que gostava de caçar passarinhos”, construiu castelos de sonhos (“os castelos de menino” CV – p. 16), plantou asas no peito e foi feliz (“Quando menino plantei asas no meu peito” CV – p. 26) na Terra do Nunca.
Não obstante, quando “fragmentos da infância” acordam essa voz, o passado quer se fazer presente, uma réstia acende um castiçal de loucura no homem que o poeta é hoje, demonstrando sua angústia e o desejo de permanecer criança, inocente, sonhador, ou seja, continuar sendo feliz. Sentimentos sintetizados no verso: “Felicidade é coisa de poeta sem poesia” (OCP – p.13). O menino que caçava passarinhos “mas eram os passarinhos que o caçavam” (OCP – p.14) e tinha seus olhos “cheios de pássaros / Cantos, cores, asas e poesias”, virou pássaro na gaiola, Assum Preto sofredor porque “um vento surgido do meio da Noite / arrastou o menino para um canto do tempo” e o poeta adulto “faz versos tristes, / ... como um passarinho morto” (todas as citações de OCP – pp. 14 e 15) porque seu poema é sua alma (“Meu poema é minha alma” OCP – p. 13).
Esse conflito, que se constitui uma verdadeira antítese do eu lírico – poeta (homem/adulto) X menino –, nem mesmo a poesia conseguiu ocultar, por maior que seja a semelhança entre eles. Talvez porque o poeta adulto seja um ser social que se depara com a realidade e precisa enfrentar suas dificuldades, problemas. Por isso se decepciona, se angustia e sofre.
Por outro lado, como o poeta é um indivíduo que tem a sensibilidade mais desenvolvida, ao mesmo tempo carrega dentro de si a simplicidade, as lembranças e brincadeiras da infância, a ingenuidade e, por outro lado, alimenta os anseios de uma vivência diferente da vida adulta. Experiências e sentimentos dos quais não quer se desfazer, abrir mão, até porque não consegue se desvencilhar totalmente da infância, revelando, assim, uma latente síndrome de Peter Pan7 que existe em muitos de nós. A personagem, criada em 1911 pelo escritor britânico James Barrie (1860 – 1837), é referida pelo próprio sujeito poético adulto: “Só Peter Pan chora no poema do nunca” (PP – p. 40).
O desejo de não crescer, permanecer sempre criança ou, se não, pelo menos reconhecer a existência desse ser dentro de si, é confessado pelo próprio eu poético, ao declarar que o menino “ainda existe” porque continua vivo dentro de si: “É natal e o menino que existe em mim.” (OCP– p. 22). Isso comprova que, no poeta-adulto, existe um menino que, vez por outra, acorda, desperta e “arranca do baú / Fotografias desbotadas pelo tempo” (OCP – p. 22).
No decorrer das três obras que compõem a trilogia poética (pois, embora publicadas separadamente, uma dá continuidade e completa o sentido da outra), o eu lírico se autodefine “poeta menino” e, convictamente, afirma, com um verso que se repete, igualmente, em dois poemas (“Rio Guaribas” e “Rio Guaribas II”) – “Do menino que ainda existe” –, que aquele menino, que decanta sentado no tempo, escondido no peito, volta e meia, acorda, mergulha no passado, colhe imagens da infância, deleita-se, chora, rasga a vida e “as páginas da memória” que se fazem presentes e permanece vivo, porque “o poeta (está) além do homem”, mas “o menino (está) além do poeta” (OCP – p. 61)
Esse “poeta menino” é percebido, na poesia e na própria pessoa do poeta Vilebaldo Rocha, até mesmo pelo leitor comum, como assim ressaltou o seu primo Gutenberg Rocha (que o conhece desde criança) no poema “Vila dos Poetas”, que o apresenta no livro Pau & Pedra e no qual deixa evidente esse mesmo pensamento: Vilebaldo é um poeta em quem ainda se pode ver o menino que galopou, na imaginação, por mundos poéticos de sonhos e fantasias.
Posteriormente (2014)8, o poeta Vilebaldo Rocha, ao completar meio século de vida poética, sintetiza esse mesmo sentimento no poema “Cinquenta vagões”:
“Dentro o menino brincando e o homem
Folheando um álbum de fotografias
(Talvez rascunho de poesia):
Pessoas... sonhos... lágrimas... e sorrisos...
E minha alma é um trem de memórias.”
Ainda assim, esse desejo, esse sonho não se caracteriza como um distúrbio, uma síndrome patológica, mas tão somente como uma vontade de permanecer num passado povoado de boas lembranças de uma criança que viveu intensamente a infância, sem nenhuma maldade e sem se dar conta do quão difícil e complicada seria a vida adulta, mesmo quando se é poeta e se encara a vida sempre por um prisma diferente: simples, colorido; como uma expressão da beleza. E quem conhece e convive (como eu) com Vilebaldo sabe que ele é uma pessoa de uma sensibilidade incrível, ou seja, é um homem com coração de poeta e alma de menino.
NOTAS:
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(1) MARQUES, Deolinda Maria de Sousa. “Vilebaldo Rocha: um Ícaro moderno” In: Impressões de Leitura. Picos, 2018. p. 123 – 127.
(2) FERREIRA, Aurélio Buarque de Holanda. Novo Dicionário da Língua Portuguesa. 2ª ed. 31ª imp. Rio de Janeiro: Nova Fronteira, 1986.
(3) FERREIRA, op. cit.
(4) FERREIRA, op. cit.
(5) CUNHA, Maria Antonieta Antunes. Literatura Infantil: teoria & prática. 5ª ed. São Paulo: Ática, 1986.
(6) CARA, Salete de Almeida. A Poesia Lírica. 2 ª ed. são Paulo: Ática, 1986. (Princípios, 20).
(7) Essa associação se deu a partir da publicação do livro do psicólogo norte-americano Dan Kiley (1912 – 2004), intitulado “Síndrome de Peter Pan - o homem que nunca cresce”, em 1983.
(8) Poema foi escrito em 2014 e publicado in: Antologia Alerpiana – 30 anos. Picos, 2019. p. 67.
(*) Deolinda Marques é membro da Academia de Letras da Região de Picos - ALERP
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Sua crítica/ análise é bem pertinente, Deolinda! Parabéns à crítica e ao poeta- menino , Vilebaldo Rocha.
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