ALERP
ALERP
05/08/2021 06:15:23 | Por: Deolinda Maria de Sousa Marques | Visitas: 451
imagem: Divulgação
O poeta Lourenço Campos (Lourencinho como era tratado na intimidade) foi um dos primeiros vates da região de Picos e nos deixou como legado uma única obra – Canto do Nordeste – que teve publicação póstuma em 2001(1)
Segundo “A palavra dos filhos”(2), “em 1968 ele mesmo organizou todo o formato do livro” que é dividido em três partes:
Na primeira parte, intitulada Sonetos, estão os poemas mais clássicos (até mesmo pela forma), apresentando maior variedade temática e versando sobre assuntos universalmente consagrados na poesia, como amor, saudade, dor, a mulher amada, passado, mágoa, recusa amorosa, felicidade, caridade, ocaso, as ilusões da vida... Nela, encontramos ainda poemas ocasionais (“Duas Marias” p. 42), patriotas (“Independência” p. 28) e de cunho social, como “Tição” (p. 35) e “Dois desgraçados” (p. 37) – dedicados a cidadãos marginalizados –, “Inundação de Picos” (p. 52) e “Problema insolúvel” (p. 48) – no qual o poeta aborda a falta de carvão vivenciada na cidade de Manaus na década de 1940.
Embora encabeçada por um poema de exaltação a Picos (que tem como título “Minha Terra” e “Picos” como subtítulo p. 18), grande maioria dos textos deste parte da obra foram escritos em Manaus (alguns com referências à região amazônica), registrando a época em que o poeta residiu naquela cidade e vivenciou a saudade da terra natal – os poemas datados são quase todos de 1942. Vale lembrar que a obra traz dois poemas cujos títulos fazem referência direta à cidade piauiense, são eles “Picos” (p. 75) e “Sinos de Picos” (p. 52), bem como faz uso várias vezes dos termos Picos / picoenses em outros poemas. Constata-se ainda que o livro contém 14 poemas que estão datados da cidade de Manaus. No entanto, como bem observou Dom Augusto Alves da Rocha(3) (Bispo de Picos, na época), Lourenço Campos era “um autêntico cristão identificado com sua tradição familiar e com os anseios e valores que brotam da fé”. Por isso tem-se uma predominância da poesia religiosa de louvor e devoção a Jesus Cristo, a Maria – mencionada também como Mãe de Deus, Virgem Santíssima –, à Virgem de Fátima (“Valha-me Nossa Senhora” p. 54) e a outros santos: São José, São João, São Pedro, em diversos poemas como: “Sangue de Cristo” (p. 22), “Jesus Cristo” (p. 27), “Lenda da Fé” (p. 39), “Escada de Jesus” (p. 50), “Estrela das estrelas” (p. 23) e tantos outros. Encontra-se também mais de um poema dedicados ao Natal (e ao símbolo do Papai Noel), como uma data significativa na vida do poeta: “Papai Noel” (p. 41) e “O Balão Azul” (p. 104)
Esse teor se destaca como marca da formação religiosa, tendo em vista que foi seminarista – traço biográfico confessado no poema “Um Filho Padre” (p. 47). Essas particularidades da sua poesia se caracterizam pelo intenso sentimento de fé e devoção, bem como apresenta uma forte conotação conservadora e às vezes até moralista, que pode ser vista em poemas como “Conselho” (p. 25), “Castigo” (p. 98) e “Mulher Moderna” (p. 94), dado seus valores culturais, religiosos e morais.
A segunda parte da obra, que tem como título Poesias, é a mais volumosa e nela tem continuidade basicamente os mesmos temas da primeira parte. Contudo, observa-se uma grande diferença em relação ao aspecto formal dos textos poéticos. Enquanto na primeira parte todos os poemas são sonetos, nesta, todos adquirem um caráter menos rígido, ou seja, um cunho mais popular, com variação da forma poemática e das estrofes (embora predominem os poemas curtos e estrofes em quartetos ou quadras), e alguns até apresentem, como título, termos da Literatura Popular, como “Trovas” e “Cantor e Glosador”, revelando o gosto do poeta que, segundo relatos, era um versejador; fazia poesia de improviso. É nesta parte onde se encontra a maioria dos poemas ocasionais (“Hino Oficial da ‘União de Moços Católicos de Manaus’” p. 76; “Hino ao Dr. Helvídio Nunes” p. 77; “Hino do Ginásio Picoense (Marcos Parente)” p. 101) e dos dedicados à família: às suas duas mulheres Lilá e Nize (“Duas Flores” p. 92) e a suas filhas (“Minha Filha” p. 80; “À minha filhinha Maria dos Remédios” p. 90).
A terceira parte, que recebeu título homônimo à obra – Canto do Nordeste – e um subtítulo bastante esclarecedor “Em linguagem matuta”, nos remete ao legítimo e autêntico espírito do poeta Lourenço Campos, quando assume sua verdadeira identidade: “orgulho de ser nordestino”. Nordestinidade essa, muito d’ante percebida por um leitor intelectual e perspicaz – Dom Augusto – (que o conheceu e foi seu amigo particular), que de antemão nos afirma: “era um apaixonado nordestino, prenhe de sensibilidade e afeto à sua terra e à sua gente”.
O Nordeste está presente na poesia de Campos pelas constantes referências a elementos da fauna e da flora do sertão, principalmente lembrando a sua face poética, como o canto dos pássaros (sabiá, sofreu, cancão, pintassilgo, bem-te-vi, colibri, canário) e algumas árvores frondosas e resistentes à estiagem que se mantêm verdes e enfolhadas até mesmo em época de seca, como as mangueiras, oiticicas e juazeiros. No entanto, sua exaltação maior e mais constante é à carnaúba, palmeira símbolo do Piauí, cujas folhas são referidas como “leques nacionais” e o seu farfalhar como “palmas da liberdade”.
Mas as plantas são mencionadas não apenas pelo seu lado poético. Lourenço se refere também a outras como fonte econômica do Estado: a oiticica, o coco babaçu, a carnaúba, o sisal – como matérias-primas do extrativismo vegetal – e a mandioca e o algodão, como produtos de uma agricultura promissora e rentável, caracterizando-se uma explícita propaganda do Nordeste e, especialmente, do Piauí.
Além das riquezas florestais do bioma do semiárido nordestino – a Caatinga –, referido como “Da gleba do meu sertão” (p.75), enaltece ainda aspectos culturais, dando destaque para a vocação pastoril do processo de colonização “do sertão do Piauí” (p. 121), tais como o aboio do vaqueiro – tipo humano característico do Nordeste e mais especificamente do Piauí –, cognominado pelo poeta como a “terra das boiadas”; e o carro de bois, como meio de transporte de produtos e do sertanejo.
O poeta, humildemente, assume a inferioridade do Nordeste (e sobretudo do piauiense como “Filho da gleba mais pobre da nação” p.70), como uma região “pobre”, “desprezada”, castigada pela seca (com uma referência precisa à seca de 1932 no poema “Confissão de um Flagelado” p. 130), fator climático gerador de sério problema social – a migração para a região Sudeste (São Paulo) –, desaguando sempre em decadência moral do homem nordestino. Assim sendo, no Nordeste, a chuva causa alegria (“Chove no Piauí” p. 82), por isso é muito comum se suplicar, rezar e fazer promessas aos santos para chover:
“E o povo na terra
Cansado de sofrer,
Pedia a S. Pedro para chover...”
(“Prece de São Pedro” p. 102)
O poeta se refere não somente às riquezas. Exalta a cima de tudo as belezas mais poéticas da região, (“Pois a paisagem é beleza” p. 71) que se caracteriza pelo “clarão da lua”, um “céu de anil, bordado de estrelas”, com “pedacinhos de nuvens (nuvenzinhas) alvas, brancas como pluma de algodão”, um “sol de ouro”, onde o vento tange as folhas das carnaubeiras, espalhando “um cheirinho de Nordeste” (p. 73), cujo farfalhar “é o (exato) canto do Nordeste” (p. 71).
Nessa perspectiva, percebe-se claramente um diálogo da obra poética de Campos com a “Canção do Exílio”, de Gonçalves Dias, quando estabelece uma evidente oposição Nordeste (Cá / Aqui) X (Lá) Sul – em especial São Paulo e Rio de Janeiro (“Lá no Rio de Janeiro” p. 71).
Campos menciona, além dos pontos econômicos e poéticos, outros traços culturais dos hábitos e costumes do Nordeste como as Festas Juninas, com fogueiras e práticas de “experiências” e “simpatias”, como por exemplo olhar o rosto numa bacia com água, próximo à fogueira, na noite de São João (“Coração Afogado” p. 126):
“Tinha uma de gente
Espiando na bacia
Qui istava cheia dágua,
E cada qual espiava...
Aquele que visse a cara
No outro ano existia”.
A obra poética de Lourenço Campos (como um todo) é uma exaltação à nordestinidade. Entretanto, dá destaque para o Piauí (“Salve, Piauí”), de maneira especial para Simplício Mendes (cidade onde viveu os últimos anos de sua existência terrena) e Picos – “Como são lindos os picos” (p. 88) –, sua terra natal e amada, com referências precisas às igrejas, à serra da Atalaia, aos rios Guaribas e Riachão e à lenda do Morro de Quebra-Pescoço. Já a região amazônica (Manaus), onde o poeta na década de 1940), é pouco citada em sua poesia. Apenas uma referência à seringueira (“terra do seringal”) e outra ao canto do Irapuru (sic): “Canto do Irapuru do Amazonas” (p. 21). Também, como é de se esperar, não é retratada em oposição ao Nordeste (Sertão). Lá, a saudade da terra amada é a temática predominante nos poemas, quase todos de cunho saudosista e melancólico.
Desse modo, fica evidente que Campos é mais uma voz a fazer coro com o grupo de escritores regionalistas em defesa do Nordeste(4). É na década de 30) que surgiram os primeiros sentimentos de nordestinidade, quando o povo do Nordeste começa a sentir seu abandono e a perceber o descaso do poder público em relação à região, dada a hegemonia político-econômica de estados do Sudeste, conhecida como “República do Café-com-leite”. Ao mesmo tempo em que denuncia o abandono do Nordeste, Campos elabora uma verdadeira propaganda do Piauí, como um Estado promissor para investimentos.
No poema “Convite” (p. 62) faz um apelo às “Indústrias de São Paulo” para investirem no Estado:
“São Paulo dos Bandeirantes
Caçadores de esmeraldas!
Venham ver o Piauí
Linda terra das boiadas.” (p. 63)
Para tanto, apresenta as riquezas extrativistas e agrícolas, a grandiosidade da Usina de “Boa Esperança”, a figura do próprio governador, como “um homem de fibra / Honesto e trabalhador” (p .62) e conclui afirmando que a “cruz de madeira”, “que foi a primeira plantada aqui no Nordeste”, está de braços abertos para acolher os que aqui chegarem, assim como o Cristo Redentor, no alto do Corcovado.
Nesse sentido é que Lourenço Campos, embora reconhecendo alguns problemas (sobretudo o fator climático da seca) e confessando uma “inferioridade” do Nordeste, em particular do nordestino, como “matuto”, “matutado”, “caipirado”, constrói toda uma argumentação poética em defesa do sertão e do próprio homem nordestino, ao assumir publicamente (na terceira parte da obra – Canto do Nordeste – Em linguagem matuta, ) a variedade linguística da região, por meio da representação da fala na poesia, grafando palavras como çumitero, sodade, muié, cumo, zói, biête, papé, dotô, ispiá, fio, pruquê, inté, istudá, sirrindo, Pioí e tantas outras, tal qual são pronunciadas pelo homem simples e analfabeto do sertão nordestino. Optar, na escrita, por essa variedade linguística tão criticada, é declarar, sem nenhum constrangimento, mas até com certo orgulho, a sua condição nordestina.
Como exemplo inquestionável desse sentimento de nordestinidade, as palavras Nordeste / nordestino já foram empregados 10 (dez) vezes, embora esses termos ainda fossem bem pouco conhecidos na época, haja vista que, só em 1945, o Brasil foi dividido em sete regiões, sendo que em duas delas aparece o termo: Nordeste Ocidental (Maranhão e Piauí) e Nordeste Oriental (Ceará, Rio Grande do Norte, Paraíba, Pernambuco e Alagoas)(5). Temos ainda poemas com os títulos “Luar do Nordeste” (p. 33), no qual se percebe uma forte influência de Catulo da Paixão Cearense – Luar do Sertão(6) –, “Paisagem do Nordeste” (p. 70) e o “Confissões de um Flagelado” (p. 130), poema fortemente influenciado pela poesia de Patativa do Assaré(7) e, singularmente, pela música feita em parceria com Luiz Gonzaga: A Triste Partida.(8)
Posto isso, pode-se concluir afirmando categoricamente que, tal qual “Canta o vaqueiro as mágoas do Nordeste” (p. 33), a poesia de Lourenço Campos é, sem nenhuma dúvida, um “Canto do Nordeste” e uma confissão do orgulho de ser nordestino – “Tenho a honra de ser um nordestino” (p. 70) –, ou seja, é um louvor poético à nordestinidade.
Bocaina – PI, 26 de março de 2021.
Deolinda Marques
NOTAS:
_____________________
1. CAMPOS, Lourenço. Canto do Nordeste. Teresina, 2001.
2. Nota de explicação sobre a obra. p. 2 e 3.
3. Em texto de apresentação da obra. p. 10 e 11.
4. Sentimento defendido pelos romancistas nordestinos na década de 1930, cujas obras ficaram conhecidas como Romances Regionalistas Nordestinos, tias como José Américo de Almeida, José Lins do Rego, Jorge Amado, Graciliano Ramos e Rachel de Queiroz.
5. FRANCISCO, Wagner de Cerqueira e. Mundo Educação / O processo de Divisão Regional do Território Brasileiro. https://mundoeducacao.uol.com.br
6. “Luar do Sertão”, música, de grande repercussão no Nordeste, Catulo da Paixão Cearense composta e gravada em 1935.
7. A poesia de Patativa do Assaré é influenciadora de muitos poetas nordestinos pela representação da linguagem oral na poesia e, sobretudo, por assumir publicamente a variedade linguística do homem nordestino e analfabeto.
8. “A Triste Partida”, música de Patativa do Assaré e Luiz Gonzaga, gravada em 1964, que aborda o sofrimento do homem nordestino ao retirar-se de sua terra.
Comentar matéria
Seja o primeiro a comentar esta matéria!
Mais de: artigos
O poeta Lourenço Campos (Lourencinho como era tratado na intimidade) foi um dos primeiros vates da...
Há dez anos (2011), quando me propus a averiguar a recorrência e representação...
“Impressões de Leitura”, de Deolinda Marques, deixou-me extasiado por tão belos momentos...
Começo esse artigo com o poema do meu amigo Ozildo Batista que, com sua imensa capacidade de síntese...
A pandemia, em seu arrastão impiedoso, tirou-nos, em 03.10.2020, Chico de Júlio, nosso ...
Mesmo repetindo um chavão recorrente nas apresentações de obras literárias, é...
© 2024 - Academia de Letras da Região de Picos - ALERP - Fale Conosco