ALERP
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07/09/2022 20:17:06 | Por: Deolinda Maria de Sousa Marques | Visitas: 440
Foto: Divulgação
* Deolinda Marques
Se examinarmos os manuais de História da Literatura e Dicionários Biográficos, constamos claramente que a presença da mulher representa uma pequena minoria. E, em se tratando do Piauí, essa ausência se torna muito mais evidente. Talvez por falta de coragem (ou muito mais de oportunidade) de revelar para o público que escreve, a participação feminina nas produções literárias, e artísticas de um modo geral, pode ser considerada uma raridade e vista até como excêntrica numa sociedade dominada por homens. Poucas foram as mulheres que tiveram a coragem de expor seus sentimentos, mesmo que através de um eu poético.
Camila Maria da Silva faz parte dessa exceção. Mesmo priorizando o seu papel de esposa, mãe e dona de casa e a sua vida profissional como professora (profissão considerada quase restrita a mulheres), Dona Camila (como era conhecida) deixou sua marca nos anais das produções literárias de Picos, incluindo seu nome na História da Literatura no Piaui.
Nascida a 16 de setembro de 1939 em Jenipapeiro (atual cidade de Francisco Santos), portanto natural do Vale do Riachão (uma alvariana, sem nenhuma dúvida), Camila é filha de João Mariano da Silva e Maria da Silva Rosa, compondo uma família típica da época com vários irmãos, com destaque para o ex-padre e professor Mariano, homem considerado sábio e muito culto, em quem muito se espelhou. Casou-se em 1961 com João Arcênio, com quem teve quatro filhos.
Formada em Letras e Pedagogia, com habilitação em Supervisão Escolar, dedicou toda a sua vida ao magistério como professora de Língua Portuguesa e de Inglês, atuando nas redes de ensino municipal e estadual, em Francisco Santos e Picos, assumindo também outras funções administrativas, como coordenação, direção, superintendência e até o mais alto cargo da época, como Diretora Regional de Educação, em Picos.
Filha, irmã, esposa, mãe, avó e amiga dedicada, a professora, escritora e poetisa Camila Maria da Silva nos deixou como legado duas obras poéticas: Emoções Evolutivas (2000)1 e Sintonia do Amor (2005)2.
O livro de estreia – Emoções Evolutivas (2000) – traz na capa desenho artístico de Luís Campos e Gilvan Silva, epígrafe de caráter filosófico (que já nos dá o tom da obra), uma síntese com dados biográficos-profissionais da autora, agradecimentos, dedicatória (a Deus, familiares e companheiros da educação) e algumas palavras da autora, confessando que, desde criança, gostava muito de ler (influência do seu irmão Mariano) e de poesia. Como consequência disso, passara a escrever como uma forma de “desabafar”, mas sem nenhuma pretensão de ser poeta.
Sem pretensão ou não, os textos que compõem a obra são na sua maioria poemas de caráter filosófico, refletindo sobre a “vida” (em todas as suas dimensões), do seu “desabrochar” às “veredas” e “caminhos” que conduzem a existência. Abordam ainda temas que nos levam a reflexões profundas, como: sucesso, egoísmo, ética, liberdade, felicidade, e sobre a importância do papel social do professor/educador num mundo de mudanças, apontando até mesmo a necessidade desse se manter atualizado (como saber usar a internet).
Embora essa seja a marca principal da obra, muitos poemas estão voltados totalmente para temas poéticos consagrados, como a natureza, o pôr-do-sol, cascatas, beija-flor, Flamboiant (sic), que, de alguma forma, remetem também a uma tônica memorialista da infância, atualizada em outro momento da vida, marcado pela realidade (como em “Casa isolada” p. 19) e vivenciado pela saudade. Seguindo essa mesma vereda do saudosismo, temos ainda a poesia ocasional – que provavelmente era produzida pela necessidade profissional – dedicada à pátria (7 de setembro), ao trabalhador (dia 1º de maio) , dia das mães (2º domingo de maio), dia dos pais (2º domingo de agosto) e às suas duas cidades do coração: Francisco Santos (onde nasceu e viveu a infância) e Picos (cidade que a acolheu).
A segunda obra – Sintonia do Amor (2005) – já bem mais volumosa e elaborada, é uma publicação apoiada pela Academia de Letras da Região de Picos – ALERP e prefaciada pelo então presidente, o jornalista Francisco das Chagas de Sousa. Semelhante à primeira, traz epígrafes elucidativas sobre o conteúdo da obra e dedicatória a familiares e amigos (alguns já falecidos), dessa vez em forma de poesia. Os dados biográficos-profissionais só aparecem na quarta-capa. Novamente, através das “Palavras da autora”, explica que o objetivo do livro é “mostrar algumas das diversas facetas do amor”, desde a concepção até os sentimentos “humanos e fraternos”.
Diferentemente do primeiro publicado, o livro contém alguns textos escritos em prosa (“De bem com a vida”, “O lago”, “Felicidade”, “Uma perspectiva como resposta de resolução”, “Natal” e “Meu Flamboiant” – sic), que podem ser classificados como crônicas ou simplesmente prosa-poética. Conta ainda, no final, com uma pequena participação de Mariano da Silva Neto (com um trecho do seu discurso – “Profissão de Fé” – “proferido por ocasião da outorga do Título de Professor Emérito pela UFPI – Teresina / 1997” e uma pequena “Mensagem” de Danilo, “lida por ocasião da missa de 7º dia do falecimento de Mariano” (ambos irmão e sobrinho da autora), bem como traz a citação de uma estrofe do “Navio Negreiro”, de Castro Alves, que, segundo Camila, era o poema preferido do seu irmão e que ele gostava sempre de recitar. Essa inclusão demonstra todo o respeito, admiração e influência de Mariano na vida da irmã.
No entanto, embora tenha anunciado uma obra mais lírica, a temática predominantemente filosófica tem continuidade no segundo livro, com poemas reflexivos sobre o silêncio, o tempo, a vida (em todas as suas dimensões) e os sentimentos e atitudes humanas, como: amizade, sorriso, união, sonhos, esperança, desejo de paz; bem como sobre as mesquinharias do ser, como orgulho e vaidade, somados a aspectos angustiantes da realidade e da vida: dor, sofrimento, incertezas, certeza da morte e desejo de imortalidade, ao mesmo tempo que confessa uma fé inabalável em Deus, como ser supremo e força do universo. A formação religiosa apresenta-se não somente pela confissão da Fé, mas também como compromisso, ao abordar problemas sociais como preconceito, o abandono infantil, a juventude e, sobretudo, a preocupação com seu processo de formação educacional.
Entretanto, ganha maior destaque a poesia ocasional, por meio de poemas de louvor a parentes e amigos, e do reconhecimento e gratidão às pessoas e instituições que de alguma forma tiveram importância na sua trajetória pessoal e/ou profissional, acentuando, assim, o aspecto memorialista, pelas lembranças da infância, com destaque para a cidade de Francisco Santos, a casa onde nasceu, a figura do pai, viagens e recordações do passado. Destaca-se ainda o lado poético, por meio da abordagem de temas consagrados pela lírica, tais como: carência, solidão, despedida, tristeza, saudade, sonhos, flores, correnteza, lago, manhã ensolarada, noite de chuva... Enfim, “coisas que machucam” e sentimentos de um eu lírico mais aberto a expressar suas dores, tendo como ponto alto o poema “A luz da lua e o violão”, do qual citarei apenas a última estrofe:
“Lua e violão
Companheiros da ilusão.
Dissolvam meus segredos na amplidão,
Porque eles são só meus,
Ou deixem em outra dimensão”.
(Sintonia do Amor, p. 28)
O tema que é apresentado como proposta da obra (a partir do título “Sintonia do Amor”) termina ocupando pequeno espaço. Talvez tenha faltado a Camila a coragem de expor sua intimidade, sua alma feminina. Revela-se uma mulher ainda presa a valores tradicionais e que, embora no decorrer das obras perceba-se essa necessidade, o eu poético não consegue se desamarrar dos padrões pré-estabelecidos pela sociedade e pouco demonstra seus sentimentos como mulher. No entanto, o Amor Eros3, num sentido mais, voluptuoso (carnal, sexual), como chama invisível, procura, sentimento sem limites, desejo, atração física desponta em versos como:
“Quero vê-la pessoa amada,
Encontra-la e abraçá-la
No silêncio gélido e triste da noite,
Na penumbra da madrugada.
Com ânsia fremente apertá-la,
Amá-la com volúpia,
Com uma sede ardente que me devora
E as minhas feridas arrebentem.”
(“Desejo” p. 70 - Sintonia do Amor),
enfrentando, mesmo que timidamente, a família, a sociedade, numa postura vanguardista de desejo de liberdade.
Camila Maria da Silva, que faleceu no dia 02 de setembro de 2019, era membro da União Picoense de Escritores – U. P. E. e foi a escritora homenageada no XIII Seminário de Literatura Picoense, realizado nos dias 25 e 26 de outubro de 2019 pela Academia de Letras da Região de Picos – ALERP, como forma de reconhecimento à sua contribuição para as letras e a cultura da região.
Assim sendo, não somente pelo papel como educadora, desempenhado com dedicação e compromisso, e pela importância da obra que nos deixou, mas, sobretudo, pela atitude corajosa de mulher que viveu em sintonia com seu tempo, é que, o desejo e a certeza de vida eterna e de permanência entre nós, revelado no poema “A imortalidade”:
“Os grandes de espírito de sabedoria
Eternizam-se na vida eterna
Pelos grandes projetos de amor e desafios.
Após a morte, o seu nome vivo continuará
Como uma flama, como uma chama a brilhar,
Preenchendo com amor e exemplo os corações vazios,
Coisas passadas que na vida foram desafios.”,
(Sintonia do Amor, p. 60)
torna-se concreto e nos faz afirmar com convicção e para posteridade: Dona Camila vive!
Bocaina-PI, 26 de fevereiro de 2022.
______________
* Deolinda Marques é professora, escritora e poeta, ocupante das cadeiras Nº 27 na ALERP e na ALVAR.
1 . Emoções Evolutivas. Picos/Teresina: COMEPI, 2000.
2 . Sintonia do Amor. Picos: Gráfica e editora Gadelha Ltda, 2005.
3 . Usando a classificação dos três principais tipos de Amor humano: Ágape (afinidade de ideias espirituais), Eros (atração física e desejo) e Philos (afinidade mental e cultural)
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Parabéns, Deolinda Marques, por mais uma vez se debruçar sobre a obra de um/a escritor/a da nossa região e apresentá-la ao público que, por ventura, ainda não a conheça. O seu apanhado histórico e comentários/análises literários são tão pertinentes e interessantes que nos fazem querer conhecer a produção da autora cotejada. Dona Camila e Deolinda Marques presentes... na arte literária!
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